domingo, 3 de maio de 2015

A sopa da Mãe!




«Não lhe cheguei a perguntar se as mães «estão sempre lá». Se devem «ficar sempre lá».

E isto, à primeira vista, a propósito dum livro que eu acabei de ler: « Sítio da Coisas Selvagens (versão alargada, e retomada por outro autor, doconto para crianças Onde Vivem os Monstros).

Resumo-o de modo muito breve:
O menino zangou-se. Sentiu-se abandonado, não considerado, ultrapassado e zangou-se mesmo muito. Fez imensos disparates em casa. Primeiro, dirigidos à irmã mais velha. Depois, à mãe, ao namorado da mãe e, quando, um dia, chegou ao limite do desespero, vestiu uma pele de lobo, que alguém lhe tinha oferecido quando ele era pequeno, e saiu a correr, pela mata que ficava atrás da sua casa. Não me lembro bem se a intenção dele seria só correr um pouco na mata, mas o certo é que não foi isso que aconteceu. Por sorte, ou por azar, ancorado junto a um lago encontrou um barco. Meteu-se nele e foi remando sem destino até que chegou a uma ilha. Inicialmente, julgou que ali não havia mais ninguém mas em breve percebeu que a ilha estava povoada de monstros. Monstros que praticavam as maiores crueldades. Depois de uma hesitação inicial, juntou-se–lhes. Com eles praticou também as maiores crueldades. Toda a espécie de destruição. E, embora percebendo que aquelas eram criaturas mesmo muito estranhas, seguiu-as por vários caminhos. Acabou por ser aclamado rei da ilha, gostou de ser rei, usou e abusou do seu poder, foi obedecido, elogiado e, passado algum tempo, detestado. A certa altura, percebeu que ali já corria grande risco de vida e resolveu vir embora. Meteu-se no barco, navegou durante meses ou anos, não se sabe bem. Mas um dia voltou a ver terra e retornou à sua cidade. Era noite escura. Todas as casas estavam com a luz apagada. Todas menos uma: a sua. Dirigiu-se para lá. A porta estava aberta. Entrou. Foi andando pé-ante-pé e quando chegou à sala viu que a mãe dormia, estendida no sofá. Ao lado, sobre uma mesinha, tinha deixado uma tigela de sopa: a sopa que costumava fazer ao menino quando ele estava doente. Ele aproximou-se, ajeitou os cabelos das têmporas da mãe, ficou a olhá-la e a pensar que, naquele momento, depois da longa ausência, a conhecia melhor. E continuou a olhá-la durante muito tempo e a perceber como gostava dela. Durante a estadia na ilha, tinha morto todos os monstros que o haviam impedido de perceber isso.

E eu, voltando ao princípio, queria perguntar-lhe se as mães estão sempre lá. Se devem ficar à espera. Se há sempre - explícito ou implícito - um retorno depois das viagens dos filhos (adultos), depois deles terem, eventualmente, enfrentado monstros. Se crescer é retornar, mesmo partindo, se é guardar gostos e memórias se as afinidades lá estarão, mesmo que não expressas, se os caldos antigos não arrefecem e se conservam a capacidade de retemperar. E se lhe pergunto isto, é porque há, num canto de mim, uma maternidade por exercer que sinto como uma maternidade em espera, ou uma maternidade ferida. Há muitos anos eu pensava que havia um tempo de ser mãe e acho que fui mãe completa, no tempo em que pensava assim. O que eu não sabia é que isso não acabava, que esse vínculo indestrutível era um vínculo que não me deixaria baixar a guarda. Que me obrigaria a ficar em estado de alerta toda a vida.

Por isso coloco-lhe mais esta questão: deveria eu vestir também uma pele de lobo, arranjar um barco real ou imaginário, achar uma ilha, matar todos os monstros que encontrasse e retornar depois?»